quinta-feira, novembro 16, 2006

Passar...

Naquela noite ele decidiu que não deixaria mais.
Depois de muitos anos de imposição e humilhação, pensou e repensou, lembrou e pesou, pareceu e concluiu, e, sabe-se lá como, decidiu.
Engoliu em seco, secou a fronte e bebeu a cachaça. Rabiscou letras, desenhou rabiscos e chorou um pouco.
Amanhã bateria de frente consigo, e escolheria, de uma vez por todas de que lado do espelho ficaria.
Simples jogo de adivinhar, joga as cartas na mesa e aponta. Se ganhar desdenha sua estirpe e foge de uma vez por todas,se, por ventura, perder, continua na sarjeta da casa. Embaralha, pensa, muda de última hora, solta na mesa, descobre o destino e pula da escada, se perde no mato, se esconde na garagem do prédio, se molha na grama, se perde nas luzes da rua, desvia das putas, grita pra sebe, despenca do morro, machuca o mendigo, tropeça nos pés e tira seus tênis, encontra uma fonte, e bebe, na avenida se estica e dorme.
Tão intensa a noite... nunca havia feito tanto em tanto pouco tempo. Falou com um senhor que vinha e pediu as horas, sabia que ainda era de manhã, mas certeza não era. "Caramba! Três da tarde me disseste?" Nem ligou pro coitado e, sem confirmar, seguiu em frente.
Começou a sentir falta do cheiro de almoço que sentia ao abrir os olhos de manhã, mas jurou não pensar mais nisso.
Caçou como um cão urbano o pão-de-cada-dia, e brigou por uma coxa de galinha. Subiu a escada da catedral, e dentro matou sua sede com a água benta.
Seis meses depois ainda era o mesmo. A casca mudara, mas o íntimo era Paulo. Escreveu, com carvão, na lajota assim:

“Sem Marta não vivo
Sou ébrio, vivo, mas sóbrio morto fico
Sem vida sou parte, parte de Marta
Mas Marta morta, mata a parte que lhe tolhe”.


Descobre assim, que nunca fora nada pra ela, e que jogou fora sua vida por uns vinténs.
Sempre em demasia, e nas horas erradas, resolvia no exagero, o mínimo de sofreguidão
Mas agora era tarde, e a tarde se fecha, e a noite, a ele abate...